Tenho andado há já algum tempo para escrever este desabafo. De um modo geral, eu costumo contar coisas divertidas (mas todas verdadeiras) sobre a minha vida, especialmente sobre a minha infância. Mas hoje vou escrever sobre algo que se passou comigo, no sentido de vos dar a conhecer coisas que eu tive de enfrentar e que fizeram com que esta vossa amiga seja assim e não de outra maneira.
Eu já vos tenho contado como os meus amigos de infância, principalmente os que viviam no prédio, como nós éramos chegados. Já vos contei que estávamos sempre juntos, brincávamos juntos e partilhávamos tudo, estávamos sempre na casa uns dos outros, enfim.... éramos um grupo. Na maioria das vezes sim. Como eu descobri, nem sempre isso era verdade.
Um dia, aquela vizinha que eu vos contei que quando fez de Tim (dos Cinco), lhe deu uma grande volta à tripa e teve de tomar banho, fez anos. Ora, eu costumava ser convidada para ir à festa de anos dos vizinhos e esperava também ser convidada para esta. Mas, não, esta festa ia ser diferente. Os convidados eram apenas os colegas do colégio, mas nem os vizinhos que andavam nesse colégio iam participar na festa. Então, eu não levei a mal. Se eles também não foram convidados, eu fiquei descansada. Mas fiquei a pensar porque não fomos convidados? Aquilo fez-me alguma confusão. Já me fazia confusão o fato de não ter sido convidada, uma vez que estávamos sempre juntas, mas os vizinhos também não foram, .... aqui há gato - pensava eu!
Pois é, havia mesmo. A irmã mais velha (que ainda hoje está sempre a rir!) acabou por se descoser e admitiu que só foram convidadas crianças com classe, porque queriam uma festa com estilo e mais algumas coisas que eu não percebi. Aquilo ia ser tao fino que os convidados iam chegar de táxi. Grande coisa, pensei eu, o meu pai era taxista e eu cheguei à escola algumas vezes de táxi. Tu queres ver que eu tinha estilo e não sabia. Oh, pá, se ao menos o meu pai não tivesse falecido, eu podia combinar com ele e ele ia levar-me ao prédio de táxi.... enfim, ...
Bem, já que ia ser um acontecimento, eu e os restantes vizinhos fomos para a entrada do prédio à espera das estrelas na passadeira vermelha. De vez em quando, vinha a irmã mais velha (a rir) mandar-nos sair. Eu não levei a sério. Voltava à carga, agora dizendo que a mãe não estava a achar graça nenhuma a nossa presença ali. Mas ela continuava a rir.... eu já não percebia nada. Então a mãe da vizinha que gostava que eu brincasse com a filha, que eu ajudasse nas limpezas da casa e da loja, que fizesse recados, que fosse ao pão, que ajudasse nas limpezas (ah, já tinha dito isto, ...não me apercebi...) estava a mandar-me embora???? Eu agora já não fazia falta.
Eu ate ia para casa, mas ouvi dizer que já chegaram! Alto, que eu agora vou ficar.
E la fiquei eu a segurar o portão, para os convidados passarem. Que lindas roupas e sapatos!!!! E que lindos penteados!!!! Realmente os convidados estavam muito bem vestidos!!! E eu pensava: que bem que eles estavam! Nós realmente éramos uns broeiros: íamos às festas todos sujos, ranhosos, despenteados (pois fazíamos as festas quando estávamos a brincar). Agora percebo porque não fomos convidados....
O que se passou a seguir é que eu não estava nada à espera. Ainda meia inundada com tamanha classe e bom gosto e sinto na minha perna direita um valente pontapé dado por uma das convidadas com o seu sapatinho de sonho... eu olhei para a menina-de-bem incrédula e sem eu dizer nada ela diz bem alto e num tom autoritário: "Tu és pobre!"
Eu sentia uma dor tao grande na minha perna, porque ela fez questão de usar toda a raiva dela naquele pontapé, mas sentia uma dor maior dentro de mim, por não entender porque é que ela reagiu assim. Eu não lhe fiz nada, eu não lhe disse nada. Eu só estava a segurar o portão para ela passar...
Sabem o que é que ela fez? Desatou a chorar. Eu estava ainda atordoada com aquilo e começo a ouvir a mãe da vizinha a vir na minha direção a perguntar o que é que eu tinha feito e a dizer que eu pus a moça a chorar. Eu??????? E veio a irmã, meia a rir, a dizer que já sabia que eu ia portar-me mal.
Eu não me recordo se eu chorei, mas devo ter chorado. Não só porque me doía muito a perna, mas principalmente por terem sido injustos comigo. Dias depois ainda falavam sobre isso sempre que me viam, porque a criatura foi para casa dizer que tinha sido maltratada por uma pobre.
Eu nunca me senti menos gente, por ser pobre, mas daquela vez eu descobri que há pessoas pobres de espirito....